Um dos maiores clássicos do Ghibli chega na coluna Otakismo.
“- Nós já trocamos todos os quimonos da nossa mãe por arroz, você costumava aceitar dinheiro…
– Não é uma questão de quimonos ou dinheiro. Sou um fazendeiro, mas mesmo eu não tenho comida sobrando para compartilhar”
Em abril de 1988, o Studio Ghibli lançou duas animações de maneira simultânea no Japão. A estratégia era diminuir o risco financeiro do estúdio, já que o eventual fracasso de um projeto poderia ser amortecido pelo sucesso do outro. A aposta encarada como a mais arriscada era a dirigida por Hayao Miyazaki, o alegre e aconchegante “Meu Vizinho Totoro” (Tonari no Totoro). O título visto como a ‘vaca leiteira’ daquela primavera foi o sóbrio e soturno “Túmulo dos Vaga-lumes” (Hotaru no Haka), sobre as vítimas civis japonesas da Segunda Guerra Mundial.
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Totoro acabou sendo um sucesso financeiro, enquanto Hotaru no Haka fracassou em bilheteria. Todavia, após o filtro do tempo, este segundo ganhou respeito pela sua qualidade e teor educativo. A despeito de ser uma animação, é unânime a opinião de que Hotaru no Haka é uma das obras japonesas anti-guerra mais pesadas e significativas já criadas.
A animação como mídia, mesmo a japonesa, costuma apresentar uma abordagem lúdica, explorar o fantástico e entregar entretenimento ao público. Hotaru no Haka, porém, é um filme animado realista, cru e cruel. É comum os espectadores relatarem choro ou que seus humores foram lançados ao chão após assistirem. Corpos carbonizados cobertos de larvas e moscas, espancamentos infantis, fome e destruição urbana são apenas as formas de impacto visual. Outro golpe, igualmente profundo e pouco palpável, é a desintegração do tecido social em tempos de guerra. Os bombardeios nucleares monopolizaram a atenção do mundo a respeito das vítimas japonesas, o que torna pouco conhecido do público médio o horror vivido em todo o Japão, não só em Hiroshima e Nagasaki, durante os dois últimos anos do embate.
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É a partir da interpretação desse anime (meu favorito) que gostaria de desenvolver uma ideia bastante discutida entre os historiadores de Japão: a percepção de que centenas de milhares de japoneses – talvez milhões – morreram na primeira metade do século XX vítimas não apenas da guerra, mas também da cultura japonesa. Sendo mais preciso, vítimas da distorção que os militares e educadores japoneses fizeram da história e da cultura nipônicas, sobretudo a respeito do legado dos samurais.
Mas o que os samurais têm a ver com a Segunda Guerra? Tudo, e esse espetacular filme do Ghibli vai te ajudar a entender essa escondida e perversa conexão. O texto contém todos os spoilers, pois desenvolverei uma análise em cima dos elementos do filme. Encare-o, caso não tenha assistido, como um convite ao ato (ainda que, por ser baseado em fatos reais, o andamento já é previsível).
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Túmulo dos Vaga-lumes, dirigido por Isao Takahata, foi inspirado no premiado livro homônimo e semi-autobiográfico de Akiyuki Nosaka, lançado em 1967. Narra a história dos irmãos Seita (14 anos) e Setsuko (quatro anos) em Kobe entre os anos de 1944 e 1945, durante a guerra. O pai deles está fora de casa enquanto luta no Pacífico junto à Marinha japonesa, já a mãe foi vítima de um ataque aéreo americano.
Um adolescente e uma criança, então, são largados à própria sorte durante o período mais difícil da guerra para os civis japoneses: quando as Forças Aliadas realizaram inúmeras investidas aéreas indiscriminadas (do mesmo modo que o Japão fazia no resto da Ásia, que fique claro) e despejaram quase duas mil toneladas de bombas incendiárias nas principais cidades, com o objetivo de queimar as casas de madeira dos japoneses e minar a mão-de-obra do inimigo. Alimentos e recursos foram severamente racionados, moradias queimadas e muitas pessoas morreram ou ficaram anos desaparecidas.
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“Hotaru no Haka (火垂るの墓) “cemitério dos vaga-lumes” pelo padrão seria escrito 蛍の墓, com o kanji para “vaga-lume”. Mas aqui hotaru está escrito como 火垂 “gotas de fogo”, em referência aos bombardeiros americanos que desencadeiam a trama. O som é idêntico mas há dois sentidos paralelos, um deles ilustrado visualmente.” (Leonardo Boiko)
Seita e Setsuko a princípio vão morar com uma tia distante, mas lá se deparam com outro lado perverso e pouco difundido sobre os tempos de guerra, a insensibilidade humana em relação aos seus próprios conterrâneos. Por não poder “trabalhar pela nação”, já que tinha de cuidar da pequena irmã, Seita era constantemente hostilizado pela tia, com broncas, insinuações e privação de alimentos.
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Neste ponto do filme torna-se claro o argumento tanto do livro quanto da própria animação. A noção de que o tecido social descosturou em seu ponto mais fraco, as crianças. Hotaru no Haka joga luz na história das mais de 120 mil crianças japonesas tornadas órfãs por conta do conflito mundial. Muitas foram prostituídas, escravizadas, agredidas e/ou negligenciadas. Abusadas por parentes distantes ou tutores, inúmeras fugiram de casa e viveram de mendicância ou pequenos crimes. O filme as mostra como vítimas não apenas da guerra, mas da estrutura social insensível do período de guerra. As privações materiais revelaram o pior do lado humano não só entre inimigos.
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Ultrajado pela perseguição promovida pela tia, Seita pega as economias bancárias da mãe e vai viver com a irmã em um tipo de gruta, na rua. Lá, estariam protegidos das bombas e também dos adultos entorpecidos. Lá, viveriam como bem entendessem. Lá, poderiam comer quanto arroz branco pudessem comprar com as economias da família, não mais o mingau ou o caldo ralo servido pela megera da tia.
A realidade passou um rolo compressor nessa escolha. Os parcos alimentos produzidos no Japão eram prioritariamente enviados para os soldados em batalha. Dinheiro e objetos caros não têm valor em um contexto de fome e comida passa a ser a única moeda de troca possível. Os irmãos precisam improvisar e passam a comer rãs, estratégia insuficiente para prevenir a desnutrição da pequena Setsuko.
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Ela morre. A mãe já havia falecido. O pai deles encontrou seu fim no mar. O Japão perdeu a guerra e a Constituição Imperial foi substituída por uma redigida pelo inimigo. Parentes, país e ideologia, tudo o que atribuía sentido à vida de Seita naufragou em 1945. Restou a ele se entregar também à morte, como os samurais de quem falavam na escola.
O foco infantil de Hotaru no Haka não foi escolhido com o único intuito de sensibilizar. A motivação é ainda mais triste. O escritor do livro, Nosaka, sobreviveu à guerra por comer todos os alimentos que deveria ter compartilhado com a irmã Keiko. Ela morreu por má nutrição e o autor, consumido pela culpa, escreveu o livro como uma espécie de exorcismo desse sentimento e homenagem à falecida irmã, que pagou com a vida a sobrevida do irmão.
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Uma análise mais acurada de Hotaru no Haka fomenta uma ideia perturbadora: Seita, a pessoa que mais sofreu no decorrer do filme, é tanto vítima quanto vilão. A conclusão não pode ser diferente, Seita matou a irmã Setsuko. Ou melhor, a ideologia que implantaram na cabeça de Seita custou a vida de Setsuko. Que ideologia era essa? O código do guerreiro samurai, junto ao nacionalismo, à divindade do Imperador e à ideia de superioridade da raça japonesa. Vamos desenvolver essa ideia.
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“Após a Restauração Meiji de 1868, o sistema de classes no Japão foi abolido, o que significou a extinção do samurai enquanto classe. No entanto, o Bushido não desapareceu, mas teve seu segundo turno como uma Moral Nacional. Na época do sentimento público de dominação militarista e nacionalista no Japão (1930-45), o Bushido foi um poderoso instrumento de impacto ideológico na sociedade japonesa”
Após passar 250 anos completamente isolado sob o comando militar da classe guerreira (o Shogunato Tokugawa), o Japão foi forçado a abrir suas fronteiras para o comércio, extinguiu a divisão social por classes e instituiu o Estado Moderno no final do século XIX. Com medo de ser colonizado por alguma potência ocidental, como aconteceu com quase todos os países da Ásia na época, o Japão buscou a rápida modernização industrial, militar, científica e financeira. Em um país pequeno e de recursos escassos, isso resultou em expansionismo e colonização. O Japão se tornou aquilo que temia nos outros. Invadiu, dominou e barbarizou a China, a Coreia, a Malásia, Cingapura, entre outros.
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Alguns dos fundamentos ideológicos que justificavam a agressão eram a superioridade da raça e do projeto civilizador japonês e a manutenção e viabilização da divindade do Imperador e do Japão tradicional, que seriam garantidos pelo progresso técnico. Alguns dos burocratas da educação e todos os militares dessa época eram antigos samurais. Eles trouxeram o Código do Guerreiro dos samurais (Bushido) para os quartéis e salas de aula de todo o Japão.
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“Nas escolas, todos os estudantes liam sobre os modos dos samurais, sobre Bushido (o draconiano código do samurai), sobre o ritual seppuku (ou harakiri, ritual suicida) (…) Durante o conflito no Pacífico, incontáveis discursos e registros mencionavam a dívida do guerreiro moderno ao Bushido. Escritos japoneses centenários aconselhavam a disciplina ao guerreiro, reduzido ao seu componente fundamental, a prontidão para a morte. A imagem do valente guerreiro feudal é apresentada no Hagakure, sem dúvida a mais influente obra samurai” (Axell e Kase)
Princípios como a fidelidade cega, a preservação da honra pessoal e o valor social do auto-sacrifício, entre outros que caracterizam os antigos samurais, passaram a nortear os sistemas educacional e militar do país. Obras de conduta e etiqueta samurai como o Hagakure (de Yamamoto Tsunemono) e o Livro dos Cinco Anéis (escrito por Miyamoto Musashi, sim, aquele de Vagabond) viraram cartilha moral dos japoneses nos períodos Meiji e Taisho.
Confundir o comportamento do guerreiro medieval com o que se espera de um cidadão no mundo moderno já não seria pouco equivocado, mas o problema foi mais sério. O estandarte do samurai escolhido não foi o do samurai histórico, foi o do samurai idealizado pela literatura.
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“Um fato crucial a se lembrar sobre o Bushido é que, a partir de 1615, o Japão tinha vivido em paz ininterrupta por mais de 250 anos (não existe paralelo na história mundial). Os samurais, frequentemente estereotipados como ‘ferozes guerreiros’, tornaram-se burocratas, enquanto, com suas canetas, registravam o caminho do samurai. Por causa do longo período de paz ininterrupta, o código do Bushido começou a ser registrado de modo idealista, metafísico e romântico”
Durante o período Tokugawa, o Japão passou por mais de dois séculos de paz interna e externa. Os Daimiyo (“senhores feudais”) e o Shogun gastavam amplos recursos para sustentar uma classe guerreira que simplesmente não tinha mais utilidade. O samurai, que vivia exclusivamente em função da guerra, entrou em crise existencial. Ele se preparava durante toda a vida para combates que não aconteciam. O samurai do período Tokugawa era um guerreiro Buzzatiano. Muitos viraram burocratas, poetas, filósofos, professores de artes marciais, comerciantes. Foi nessa época que alguns desses samurais sistematizaram no papel o código do guerreiro, louvando o valor do sacrifício, a beleza e a inefabilidade do perecimento, a preferência da morte honrada à rendição aviltante.
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Ou seja, muitos dos valores pelos quais reconhecemos os samurais, dentro e fora do Japão, são uma invenção (ou amplificação) intelectual do século XVII! O conceito de que o samurai, como classe, prefere a morte à fuga foi escrito e disseminado por samurais que nunca participaram de guerras e viviam da pena (ainda que existam casos reais anteriores, não era regra). O Hagakure, obra maior do Bushido, foi escrito oito décadas após a pacificação do Japão. Há vários registros históricos mais antigos de samurais que escreviam em suas memórias fugas despudoradas quando a situação era desfavorável, como afirma o historiador Thomas Conlan. A própria resistência japonesa à Primeira Invasão Mongol no século XIII contém episódios táticos de fuga samurai.
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O Bushido, de certa forma, foi criado mais pela pena que pela espada. Não digo que não existia um código moral oral anterior ou que atos radicais de sacrifício não existiram antes, estou falando que eles foram idealizados e amplificados quando transcritos no papel. Os samurais que vieram depois, no entanto, tomaram essa versão estética como uma constante histórica.
O “suicídio” planejado de samurais no Levante de Satsuma – a última grande rebelião samurai da história – é prova disso, quando eles avançaram de peito aberto e espadas em punho contra as armas modernas do ocidentalizado exército japonês, após passarem a noite escrevendo poesia sobre a moralidade e o encanto da morte honrada. Algo assim seria bem menos provável nos períodos Kamakura (1185-1333) ou Muromachi (1336-1573). Quando se luta por arroz, poder e terras férteis, e não por uma identidade em si, a morte é encarada como consequência inevitável do combate justo, não com desejo suicida.
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Outro detalhe, o Bushido foi sistematizado como um código que diferenciava os samurais do resto dos japoneses, quando as classes sociais foram estabelecidas por Toyotomi Hideyoshi (um dos três unificadores do Japão), numa condição hierárquica de superioridade. Samurais – cerca de 10% da população japonesa na época – tinham privilégios legais sobre os demais. O Exército e as escolas japonesas distorceram completamente o conceito já idealizado de um samurai e o generalizaram. Esperava-se um samurai de cada japonês. Foi um processo de absoluto doutrinamento que transformou o soldado japonês em um guerreiro medieval romantizado… o problema foi que esse soldado era real e portava armas modernas. O resultado é conhecido: kamikazes, Massacre de Nanquim, Unidade 731, recusa de Rendição mesmo quando já era sabido que a guerra estava perdida, sacrifício inútil de japoneses em áreas periféricas em relação à capital Tóquio (como Okinawa), e etc.
“A exploração do código do guerreiro ia de encontro ao seu objetivo original. O Exército Japonês moderno era composto basicamente por camponeses e mercadores, e o Código do Guerreiro sempre fora um meio de definir como os samurais se diferenciavam das outras classes. Durante a luta no Pacífico, a ênfase que o Código do Guerreiro dava ao auto-sacrifico revelava-se na falta de consideração dos soldados japoneses pela própria vida. Acreditando que a morte era melhor que a rendição, os soldados do Exército Imperial, em diversas batalhas, incluindo Guadalcanal e Iwo Jima, realizavam ataques suicidas quando a derrota tornava-se iminente. E havia os Kamikaze, pilotos que embarcavam em missões suicidas jogando os aviões contra navios Aliados. Usando o termo kamikaze, o vento divino que destruiu a Armada Mongol no século XIII, os pilotos modernos sentiam-se ligados a um passado glorioso.”
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É fácil constatar o resultado de uma educação militarista nas ações dos soldados em guerra, mas isso é menos evidente no comportamento dos civis japoneses que não lutaram diretamente no front, mas foram criados pela mesma mentalidade. É disso que se trata Hotaru no Haka. Seita matou Setsuko porque seguiu o Hagakure, e não a razoabilidade da situação. O fazendeiro de quem tentou comprar alimentos o orientou, “engula seu orgulho, peça desculpas à sua tia e reconheça que em tempos de guerra duas crianças nada podem fazer”. Seita teimou em carregar o fardo da criação de Setsuko nas próprias costas, orgulhosa e decididamente. Oras, foi o que lhe ensinou o Hagakure, a mais famosa cartilha samurai: “A pessoa não precisa de vitalidade nem de talento. Em suma, basta ter vontade de carregar sozinho sobre os ombros todo o clã”.
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A percepção dele da guerra era infantilizada e ingênua. Mesmo enquanto sofria as agruras e privações do conflito, antes de dormir ele imaginava o glorioso navio do pai, os fogos de artifício, a grandeza do Império Japonês. Nem por um momento ele parou para pensar nas conseqüências das agressões promovidas pelo pai militar, ou para reconhecer a difícil condição na qual se encontravam como resultado disso. E que simbolismo melhor para essa militarização da infância que um dos pôsteres do filme? A menina Setsuko, de quatro anos, batendo continência, simulando um capacete com um utensílio doméstico na cabeça e usando… fralda.
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Aqui retomo a metáfora dos vaga-lumes. Eles não referenciam apenas as bombas incendiárias americanas, mas a brevidade da vida das crianças no período. Vaga-lumes, que apenas por um breve período emprestam sua luminosidade ao mundo. Vaga-lumes que foram sepultados, na guerra ou nas cidades, por um fervor nacionalista, militarista e racista que felizmente foi derrotado, infelizmente ao custo de milhões de vidas inocentes (ou politicamente condicionadas).
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O último frame do filme é a cereja do bolo. Os espíritos dos irmãos estão sentados em um banco, cercados de vaga-lumes, enquanto olham ternamente para uma moderna metrópole japonesa. Próspera e pacífica. Como que para lembrar aos espectadores japoneses dos anos 80, o auge do progresso econômico do país, o preço que os antepassados pagaram por isso. Nos fundamentos de cada um desses prédios estão os túmulos de muitos vaga-lumes. Setsuko, Seita, o pai deles, as vítimas militares do pai deles, os filhos dessas vítimas espalhados pela Ásia e América. Isso não pode ser esquecido.
Fontes:
Som e sentido na lingüística dos kanji (Leonardo Boiko)
KAMIKAZE – Japan’s Suicide Gods (Albert Axell e Hideaki Kase)
Peace education through the animated film “Grave of the Fireflies” Physical, psychological, and structural violence of war (Daisuke Akimoto)
Transcending the victim’s history: Takahata Isao’s Grave of the Fireflies (Wendy Goldberg)
Grave of the Fireflies and Japan’s Memories of World War II (Masako N. Racel)
Forming nationalistic mentality of Japanese youth by Japanese ruling circles with use of bushido ideology (Andrei Vasil’evich Golomsha)